Perfumados Fragmentos Literários – ‘O Perfume’ – Estórias Abensonhadas, de Mia Couto

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Di Cavalcanti, Abigail(óleo sobe tela – 65 x 45 cm. – 1947)

 

O PERFUME

— Hoje vamos ao baile!
Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido um vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava.
Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?
De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia terensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais.
Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre? Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar senti a vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera.
Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia já evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração de namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.
— Nem sei o gosto de um cheiro.
Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, o vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:
— Então não passa um arranjo no rosto?
— Um arranjo?
— Sim, uma cor, uma tinta.
Ela se assombrou. Virou costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.
— Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?
— E os meninos?
— Já organizei com o vizinho, não se preocupa.
E foram. Justino ainda teve que tchovar(1) a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?
Chegaram. Glória parecia não dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão pronta, gesto presto abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pré-colegiais.
Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse a licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:
—Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.
— Você sabe que eu não danço…
E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilo de ternura: Vá Glorinha, se divirta!
E ela lá foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava seu homem, sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino:
— Onde vai, marido?
— Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.
— Vou consigo, Justino.
— Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.
Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. Alágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?
Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela ainda ali estivesse, necessitada de um empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de que m morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.
Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rasto. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada. Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho.
Porque, dentro dela, em olfactos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.
— Justino?!
Em sobressalto, correu para dentro de casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, no soalho da sala, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

(1) Tchovar: empurrar

COUTO, Mia.
Estórias Abensonhadas
Lisboa, Editorial Caminho, SA, 1994

PS: Uma constatação. Ao buscar no Google imagens de ‘mulata baile arte’ ou ‘mulher negra baile’ ou qualquer frase semelhante, grande parte das imagens é de negras seminuas ou passistas sambando. Que estereótipo, que preconceito…

 

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